RELATO DE PARTO


"Tem vez que as coisas pesam mais do que a gente acha que pode aguentar
Nessa hora fique firme pois tudo isso logo vai passar

Você vai rir, sem perceber
Felicidade é só questão de ser
Quando chover, deixar molhar
Pra receber o sol quando voltar

Melhor viver, meu bem,
 pois há um lugar em que o sol brilha pra você
Chorar, sorrir também e depois dançar
Na chuva quando a chuva vem"

Felicidade, Marcelo Jeneci


Quase todo mundo (e minha razão também) dizia que cada parto é um parto, cada história é diferente da outra. 

Mas eu não queria correr o risco. 

Depois do parto do Cauã, eu tinha três certezas: meu próximo parto seria uma cesariana, após entrar em trabalho de parto, porque eu nunca mais iria à beira das últimas consequências por um parto natural; daquela equipe de 2017, eu reprisaria a Ana, obstetriz, pela força e segurança que me transmitiu; apenas ela seria "minha equipe", pois eu estava disposta a ser acompanhada em casa por ela, chegar na emergência do hospital com dilatação quase total, ser atendida pelos plantonistas e aceitar qualquer indicação de cesárea, por mais "falsa" que pudesse ser, apenas respeitando o dia escolhido pelo meu bebê para nascer.

O Deco não concordava com a ideia, depois de tudo que estudamos sobre o nascimento, mas foi deixando, sempre me questionando, mas sem me pressionar.

A Ana, sempre respeitosa, me deu suporte, mas me recomendou, apesar da minha "convicção", a conversar com uma obstetra humanizada. O nome da Dra. Camila, sugerido por ela, sempre me ocorria, desde a gestação do Cauã, então resolvi, mesmo incrédula da minha capacidade de parir naturalmente, aceitar a indicação da Ana. 

A Camila me trouxe à razão, me relembrou de tudo que aprendi e estudei sobre o nascimento na época do Cauã, me encorajou, e mesmo assim eu continuava reticente.

Uma reação a um antibiótico me levou ao pronto socorro obstétrico às 36 semanas de gestação e o susto da possível iminência do nascimento da Alice me fez decidir por ter a Dra. Camila comigo a partir dali. Feliz escolha.

Do episódio do pronto socorro em diante, tive vários sinais de que o parto se aproximava, mas o dia nunca chegava. Comecei a ficar um pouco ansiosa, e ao mesmo tempo não conseguia me desconectar do trabalho e da rotina e me conectar com a Alice. Queria trabalhar até o último momento e cumprir metas que criei pra mim mesma, em razão do excesso de serviço, sem querer deixar meu chefe e minha amiga/parceira de cargo na mão. Eu não estava conseguindo assumir a pequena como prioridade.

No dia 31/05, uma sexta-feira, o clima no trabalho foi de despedida. Me desejaram bom parto, trouxeram presentes, abraços de “até logo”, mas eu continuava com os pés fincados no chão das responsabilidades profissionais. Até organizei minhas coisas no final do dia pra talvez não voltar, mas crendo que na segunda-feira estaria de volta.

Domingo, dia 02/06, me rendi aos apelos das pessoas mais próximas, e decidi tentar sossegar e me concentrar na pequena. Peguei meu atual livro de cabeceira, "O Livro dos Ressignificados", que ganhei da minha irmã no meu aniversário. Primeira palavra que li: "Pressa". E fiquei pensando sobre meu plano de trazer Alice à luz por uma cesariana... Quando a gente está prestes a tomar uma atitude insegura, tudo parece ser "um sinal".

Terminei a playlist dela só nesse dia... E a ouvi mil vezes, na esperança de compensar os meses que passei sem me dedicar a estes pequenos rituais. "Culpa" é um sentimento latente neste relato.

Recebemos um casal de amigos e, entre discussões acaloradas sobre política, religião e o caso Neymar/Najila Mendes, comecei a sentir contrações. Não dei muita atenção. Achei que eram mais sinais que tão cedo não se concretizariam.

Quando eles foram embora, por volta das 20h, resolvi começar a cronometrar o intervalo e duração das contrações. Elas já estavam em intervalos de cerca de 3 minutos! Mesmo assim, fui tomar um looongo banho. Pedi calmamente ao Deco pra chamar a minha mãe, que levaria o Cauã pra ficar com ela durante o parto; e avisei as meninas da equipe. 

Quando saí do banho, a coisa já estava séria. Usei o pouco que restava de bom humor pra tentar receber minha mãe sem deixá-la assustada (ela, que sendo toda "natureba", me deu à luz através de um parto muito sofrido, morria de medo de eu repetir a dose no meu segundo parto), e me despedir do Cauã sem que ele percebesse que eu sentia dor.

Logo ficou insuportável. Gritei, entoei mantras, enfiei a cabeça dentro do armário pra gritar, andei pela casa, amaldiçoei Eva pela condenação de sentir as dores do parto. Já não era eu, mas o Deco, em contato com a equipe. Resolvemos encontrá-las no hospital. Pedi a Deus pra não encontrar ninguém no elevador. Na garagem, tive que parar pra dar mais um grito, abafado por uma camisola que eu levava nas mãos. No carro, fui agarrada ao encosto do banco de trás. 

Definitivamente, não era a mesma Helô silenciosa do parto do Cauã. Daquela vez, eu não queria conversa, contato físico, e muito menos verbalizar.

Às 23h a Dra. Camila nos esperava na porta da maternidade. Dilatação total. "Corram, meninas!", era a mensagem para a Ana e a Dra. Patrícia, neonatologista que receberia a Alice.

Quando ouvi "dilatação total" fiquei animada. Como sempre tenho esperança de que minha história será fácil, tive certeza de que Alice chegaria dali a uns 15 minutos. Senti imenso alívio, crendo que já tinha sentido praticamente toda a dor necessária pra ela chegar. 

Ledo engano.

Fomos para a LDR (labor and delivery room), entrei na banheira, senti o alento da água morna. Numa das primeiras contrações, a bolsa estourou. 

Equipe completa, contrações, silêncio, gritos, dor, força, espera... Súplicas a Deus seguidas de xingamentos, uma heresia total na Partolândia. Cada contração era a esperança da chegada. Cada calmaria era uma frustração, e o temor da nova dor que logo mais viria.

Então achei que já estava lá há tempo demais (como se houvesse limite cronológico pra tudo terminar...). Comecei a pedir analgesia. E elas nada de me atenderem. O Deco me relembrando do plano de parto, eu falando pra ele não "encher o saco". 

Alice surgia, mas nunca saía. Implorei por anestesia. Saí da banheira pra tentar novas posições. Dizia que estava cansada. Pensava nas horas. Depois pensava comigo mesma mesma que precisava ter foco e concentração. Pensava nas hemorróidas, na possível laceração, no quanto estava doendo e no quanto me sentia "arregaçada" naquele momento. Daí me chamava à razão e lembrava da minha preparação e que tinha que seguir adiante.

"Pelo amor de Deus, eu quero anestesia, não aguento maaaaaais!". Eu sabia que estava com a expressão de quem vivenciava um verdadeiro suplício.

Me deram ocitocina. Contrações potencializadas. "Círculo de fogo" potencializado por uma candidíase. Força! "Tira elaaaa!!!" (eu queria que alguém a puxasse de dentro de mim, queria que aquilo acabasse). 

E foi nesse momento que parei e lembrei que agora eu estava sozinha. Ninguém poderia fazer aquilo por nós. Era EU que precisava trazer minha menina ao mundo.

E ela veio.

À 01h39 do dia 03 de junho, minha menininha estava nos meus braços. 

O primeiro sentimento foi um estado geral de alívio. Fiquei ali, olhando pra carinha dela, pequenininha, ainda ligada a mim pela placenta.

E descobri que placenta também “nasce”. A dor ainda não havia terminado por completo.

Tudo superado, mas continuei pedindo anestesia! rs



Consegui amamentá-la. Vitória!

E então era tudo gratidão. Deus, porque permitiu. Aline, fisioterapeuta perineal com quem pude contar aos 45 do segundo tempo, por me ajudar a ter mais consciência do meu corpo. Ana, Camila, Patrícia, minha equipe linda, forte, que me passou toda a segurança e paz de que precisava. Foram apoio, silêncio e força quando era apenas disso que eu precisava. Me ajudaram a reescrever minha história sobre parir. Deco, que permaneceu firme, companheiro, paciente, que passou a madrugada acordado com Alice no colo, velando o sono de nós duas. Ficamos mais unidos depois daquela madrugada.

Foi libertador. Nos dias que seguiram, não tive mais espaço pra romantismos sobre parir naturalmente. Acho tão lindo quem mantém a calma, a paz, quem consegue se prender a rituais, respirar, ouvir música, ter os filhos mais velhos ao lado, acender velas aromáticas... A realidade do meu parto, porém, é o escancaramento do meu lado mais sem filtro, sem paciência, sem romantismo, sem educação. Não é poético, mas é igualmente bonito dar tudo de si pela chegada de uma pessoinha que vem mudar seu mundo. Superei medos, frustrações, descobri uma força que eu não acreditava mais que poderia ter. 

E constatei que, de fato, cada gravidez, bebê e parto são únicos, e que, afinal de contas, a chegada do Cauã me preparou para a chegada da Alice. As vindas deles são minhas viagens mais felizes, profundas e esclarecedoras. As vidas deles me dão mais vida!

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